A verdadeira importância da rolha para quem aprecia vinho

05/07/2017

A verdadeira importância da rolha para quem aprecia vinho

Ao adentrar o Alentejo, logo se avistam árvores esparsas – em uma espécie de floresta do serrado – convivendo com vinhedos e cegonhas. Curioso é notar um número, de zero a nove, marcado em seus troncos. Eles denotam o ano em que a “casca” foi retirada dos sobreiros pela última vez. Essa casca é a cortiça, que dará origem, entre outras coisas, às rolhas das garrafas de vinho.

Acredita-se que a cortiça é usada como vedante para vinho desde o Império Romano, ou até antes. Naquela época, rolhas rudimentares eram feitas para se encaixar às ânforas. Mas foi somente com as garrafas de vidro que a rolha se tornou popular. Dessa forma, as indústrias do vidro e da cortiça prosperaram juntas a partir do século XVII. Mais do que isso, até o fim do século XX, a cortiça era uma rainha inconteste no mundo do vinho.

No final dos anos 1980 e começo da década seguinte, o “monopólio” da rolha de cortiça começou a ser questionado por produtores insatisfeitos com a qualidade dos vedantes – que realmente havia caído, especialmente depois da revolução de abril de 1974 em Portugal. Líder absoluta até então, a indústria de rolhas não se preocupava muito com seus possíveis defeitos, especialmente com o fatídico e recorrente TCA, o 2-4-6 Tricloroanisol – o composto químico responsável pelos aromas de mofo que tornam a bebida intragável –, que os franceses chamam de bouchonné, ou defeito da rolha.

No entanto, em um mundo de inovações tecnológicas, nasceram concorrentes, como as rolhas sintéticas e de rosca, que, em pouco tempo, abocanharam uma enorme fatia de mercado ao venderem a ideia de que, com elas, os vinhos não mais corriam riscos de apresentar defeitos. Então, se antes a rolha tinha praticamente 100% do mercado, de uma hora para outra perdeu cerca de 30% (ou mais) dele.

Era hora de reagir. No começo dos anos 2000, a indústria, enfim, passou a criar sistemas de controle de qualidade para combater seu principal mal, o TCA. Tempos atrás, já houve quem defendesse a apocalíptica ideia de que mais 20% dos vinhos do mundo estariam infectados com TCA. Números mais realistas dão conta de algo em torno de 4%. Hoje, contudo, a indústria trabalha com números abaixo de 0,5% e, além disso, defende a posição de que a rolha nem sempre é a culpada pelos defeitos no líquido.

Mordomo

“Quando abrimos uma garrafa de vinho e tudo está perfeito, ninguém lembra da rolha. Mas, se há algum problema, a rolha é a primeira a ser acusada. Ela é como o mordomo do filme de suspense”, brinca Joana Mesquita, relações públicas da Amorim e Irmãos, maior produtor de rolhas do mundo. Apesar do tom jocoso, sua observação é verdadeira, pois apontar a rolha tornou-se instintivo quando se trata de possíveis defeitos no líquido.

“Nem sempre o problema é da rolha. Aliás, boa parte das vezes não é”, defende Paulo Lopes, enólogo PhD responsável pelo departamento de pesquisa e desenvolvimento da Amorim. Segundo ele, há diversos defeitos que não possuem relação com a rolha e mesmo o TCA pode não ter sua origem na cortiça, mas em outras fontes, como a barrica ou mesmo outros focos de contaminação dentro da vinícola (veja box explicativo acima).

Para os representantes da indústria, um dos indicativos da “inocência” da rolha é quando há mais de uma garrafa infectada em um mesmo lote, por exemplo. “Com o controle que temos hoje, dificilmente um lote inteiro de rolhas apresentará problema. Portanto, a chance maior é de a contaminação ter ocorrido por outro fator”, garante Lopes.

Mesmo assim, combater o TCA tornou-se a questão central para os produtores e, para isso, é importante entender como aquela casca do sobreiro se transforma nesse vedante tão tradicional.


De novo em nove

A árvore do sobreiro (Quercus suber L.) é da mesma família do carvalho, inclusive os usados para fabricar barricas como os Quercus alba, Quercus robur e Quercus petraea, por exemplo. Ela está presente predominantemente na região mediterrânea, sendo que Portugal concentra mais de 30% da área total de florestas (Espanha, com 27%, Argélia, com 18% e Marrocos, com 11%, vêm a seguir). E, dentro de Portugal, o Alentejo se destaca, com mais de 80% da área de montados (como são chamadas as florestas de sobreiro). Nossa antiga metrópole, por sinal, representa cerca de 50% da produção anual de cortiça do mundo, com 100 mil toneladas.

A principal característica do sobreiro é sua capacidade de regenerar a casca. A árvore vive cerca de 200 anos, sempre renovando a cortiça. No entanto, se você pensa em sair plantando por aí para produzir rolhas, é bom saber que o primeiro descortiçamento só pode ser feito depois de cerca de 25 anos, quando o perímetro do tronco (a 1,30 m do solo) ultrapassa os 70 centímetros. A partir daí, cada novo descortiçamento ocorre de nove em nove anos. Assim que a cortiça é retirada, pinta-se um número nos troncos, representando o ano. Ou seja, neste ano, as árvores serão marcadas com o 4 e só será descortiçada novamente em 2023.

Mas, para ser ainda mais desalentador comercialmente, também deve-se dizer que somente a partir do terceiro descortiçamento do sobreiro – quando a casca se torna mais regular – é que a cortiça tem qualidade suficiente para ser transformada em rolhas ditas naturais (as mais valorizadas). Ou seja, é preciso esperar 43 anos (25+9+9). E, se o sobreiro viver 200 anos (sua média de vida), ele gerará apenas mais 17 vezes a amadia, como é chamada cortiça apta para rolhas naturais.

Outro detalhe relevante: a extração da cortiça é considerado o trabalho agrícola mais bem pago do mundo (um trabalhador chega a ganhar até 120 euros por dia), já que demanda especialização e cuidado para aproveitar o melhor do sobreiro. O descortiçamento é feito no verão (preferencialmente em tempo seco) e da árvore são retiradas porções retangulares, ditas pranchas, que ficarão pelo menos seis meses “secando” ao ar livre. Os produtores preferem usar a palavra “estabilizando” para essa prática, pois, a verdade é que a cortiça precisa estar minimamente úmida para manter suas qualidades elásticas tão importantes para uma boa vedação.

De cada sobreiro, são extraídos em média 40 a 60 kg de cortiça. Por ano, o mundo produz mais de 200 mil toneladas, o que resulta em cerca de 12 milhões de rolhas.


Tipos de rolhas

Depois desses seis meses, as pranchas começam a ser beneficiadas, passando por tratamentos para evitar o TCA, incluindo um tipo de cozedura que extrai possíveis compostos orgânicos e voláteis, e também serve para aplainá-las. Há, em seguida, um processo meticuloso de seleção para minimizar a possibilidade de contaminação e para pré-definir a qualidade da rolha que será produzida a partir de cada prancha. Assim, apenas 25% da cortiça costuma ser destinada para a fabricação de rolhas naturais.

Rolhas naturais são as inteiriças, feitas com pranchas de calibre mínimo de 27 milímetros, já que elas costumam ter entre 22 e 26 mm de diâmetro. As pranchas são cortadas e, em seguida, perfuradas longitudinalmente com um cilindro para formar a rolha.

As pranchas mais finas são usadas para a produção de discos, que serão utilizados nas rolhas de espumantes e também em rolhas chamadas técnicas. Sobras e afins tendem a ser trituradas, processadas e coladas para formar rolhas aglomeradas e microgranuladas, ou então vão para outros setores (revestimento, vestuário etc).

As rolhas naturais são o produto mais tradicional e também o mais valorizado dessa indústria. Lembrando que elas representam menos de 30% do volume das exportações, mas, em compensação, geram 75% do valor obtido. Uma rolha natural de classificação baixa (são oito níveis) pode valer menos de 10 centavos de euro, e uma da mais alta qualidade, chamada Flor, chegar a custar 2 euros. Mais caras, elas costumam ser usadas em vinhos premium, feitos para envelhecer.

A classificação é feita por critérios visuais e quanto mais e maiores forem ranhuras e poros (lenticelas) na superfície, menor seu nível. Isso se deve também ao fato de que, quanto mais poros, além de esteticamente mais feia, mais contato do vinho com a rolha e, portanto, mais chances de transmissão do TCA. Praticamente toda a triagem é feita por máquinas óticas que analisam milhares de amostras com grande precisão em questão de minutos. Ainda assim, ao final, há mais uma triagem manual.

Já os discos seguem um processo de triagem semelhante e também podem passar ainda por mais etapas visando eliminar o TCA. Na rolha de espumante, costuma-se colar dois discos na base de um conjunto aglomerado. Por que dois? “A experiência dos anos provou a eficiência dos dois discos para esse tipo de rolha, tornando melhor a vedação dos espumantes”, diz o brasileiro Cristiano Morris Paulino, diretor de vendas da Relvas, empresa especializada nesse tipo de rolha, que fornece para alguns dos principais produtores de Champagne e espumantes do mundo, como Krug, na França, e Casa Valduga e Cave Geisse, no Brasil, por exemplo.

Outra rolha técnica bastante comum é a chamada 1+1, com dois discos nas extremidades de um corpo aglomerado. Elas são mais baratas do que as naturais, mas com eficiência bastante similar. Vale lembrar que, assim como as naturais, essas rolhas também possuem níveis diferentes, dependendo da qualidade de seus discos.

Já as aglomeradas e microgranuladas, apesar de esteticamente menos charmosas e mais econômicas (podem custar menos de 10 centavos de euro), tendem a ser as mais seguras em termos de TCA. “Os grânulos são submetidos a mais processos, diminuindo dramaticamente as chances de apresentar TCA”, conta Paulo Lopes, pesquisador da Amorim. Vale lembrar que todas as rolhas ainda passam por um acabamento (polimento, limpeza, gravação etc) e novos tratamentos antes de serem despachadas (veja diagrama com as diferentes etapas de produção da rolha acima).

Não é só rolha

Faz menos de 10 anos que a indústria da cortiça resolveu retomar as rédeas do mercado de rolhas, sua principal fonte de renda. Para isso, investiu e segue investindo muito em sistemas de controle de qualidade, assim como também pesquisa e inovações – até mesmo rolhas coloridas estão sendo produzidas atualmente. Por dia, uma enormidade de rolhas, discos, grânulos etc são testados nos laboratórios das empresas para minimizar as chances de TCA nos lotes produzidos.

No entanto, além da rolha, a indústria vai tentando se diversificar. “Muitas coisas podem ser feitas com cortiça e já há muitas aplicações que as pessoas desconhecem”, lembra Rui Freire, gerente de vendas da Amorim Cork Composites, um dos braços da Amorim que produz, entre outras coisas, aglomerados para serem usados como isolamento térmico e acústico pela indústria da construção, produtos de decoração e vestuário, como calçados, bolsas e até roupas, isso sem falar no uso da cortiça pela indústria automobilística e aeroespacial.

Ainda assim, a rolha é o carro-chefe dessa indústria, que diz não ter medo da concorrência das tampas de rosca e rolhas sintéticas. “Sabemos que alguns produtores vêm testando seus vinhos com diferentes tipos de vedação, mas os resultados, até o momento, mostram as vantagens da rolha natural”, comenta João Rui Ferreira, o jovem presidente da APCOR (Associação dos Produtores de Cortiça de Portugal), lembrando que o Château Margaux, por exemplo, já descartou o uso de rolhas sintéticas, mantendo somente screw caps e rolhas naturais ainda em vista. Há dois anos, contudo, Paul Pontalier, diretor de Margaux, apesar de ver com bons olhos o uso da rosca, admitiu sua preocupação: “Queremos ter certeza de que, em 100 anos, essas garrafas estarão bem. Levará provavelmente um tempo para isso funcionar, mas, no longo prazo, realmente tenho dúvidas [se devemos usar screw caps]”. E Ferreira questiona: “Pode até ser mais fácil abrir um vinho com rosca, mas onde está o charme disso?”

Tradição, glamour, sustentabilidade (a produção de rolha notoriamente emite muito menos gás carbônico na atmosfera do que seus concorrentes – plástico e alumínio). É nesse tripé, somado agora à tecnologia para lhe dar ainda mais confiabilidade, que a rolha de cortiça se mantém e quer, cada vez mais, passar despercebida pelos enófilos.

Fonte: Revista Adega

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